segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Quando o povo ganhou televisão



Onde não houvesse televisão, também não havia família completa; alguém estava sempre em falta, fazendo multidão em casa de outrem na companhia do prefeito que tinha medo de morrer ou do Dirceu Borboleta, Lá para os anos oitenta e tal, as noites tornaram-se mais interessantes em Maputo. TVE (televisão Experimental de Moçambique) presenteou-nos com a telenovela “O Bem Amado” de Jorge Amado. As dinâmicas das famílias mudaram completamente.

Os chefes de família, através do rádio Xirico (nem imaginam o lugar que este aparelho ocupava em muitos lares), acompanhavam o noticiário e a parada de sucessos musical em volume alto com a maior tranqüilidade. Era normal, mas o telejornal com Orlando Anselmo, Gloria Muianga e companhia era outra historia. Os gajos falavam bem pa caramba, sabiam preparar-nos para as peripécias do cangaceiro Zeca Diabo.

Naquela altura, televisão servia para assistir aos filmes de Clint Eastwood em cassetes betamax. Quem não tinha um aparelho de televisão tava tramado, com esta boa nova, tinha que imigrar para casa do vizinho ou parente, mesmo que distante. A entrada em casa alheia estava condicionada a chegar cedo, depois do jantar do anfitrião (olha que estes não se faziam rogados em desmontar cabeças de peixe ao jantar sentados no sofá) e antes do telejornal.

Pouco antes do termino do jornal, quem tivesse telefone (refiro-me ao aparelho fixo, daqueles iguais a todos os outros fornecidos pela empresa provedora do serviço telefônico, pois os celulares ainda estavam no esboço de algum gênio) com aquele tom de dono-da-casa-que -esta-abarrotada, mandava o mais novo por o telefone fora do gancho. “Estas não são horas de ser importunado!” Justificavam-se.

O facto de receber “visita” em casa, dava ao detentor do aparelho (o aparelho nem precisava ter remoto) um quê de estatuto… Onde não houvesse televisão, também não havia família completa; alguém estava sempre em falta, fazendo multidão em casa de outrem na companhia do prefeito que tinha medo de morrer ou do Dirceu Borboleta. Era normal na época.

A grande procura de aparelhos de televisão impulsionou a indústria local. Começaram a ser “fabricados” localmente com “tecnologia” nacional e acessórios Alemães. O povo comprava Inca! A jóia da evolução empreendedora nacional. Ao contrário dos aparelhos provenientes da África do sul, Portugal e sabes-se lá de onde mais, nos aparelhos Inca não era necessário chamar o técnico para instalar o conversor de som. Nos Inca made-in-moçambique, era só ligar a ficha para continuar a ver as novelas sucessivas. _________________________________________________________

Para entender melhor:

RADIO XIRICO - Antigo radio made-in-moçambique
ORLANDO ANSELMO - Apresentador de televisão
GLORIA MUIANGA - Apresentadora de televisão
CANGACEIRO - Bandido, fora da lei
ZECA DIABO - Personagem da novela
BETAMAX - Antigo formato de cassete vídeo
DIRCEU BORBOLETA - Personagem da novela
INCA - Marca de antigo televisor made-in-moçambique

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